COISAS DO ARCO DA VELHA
- Os etรชs gostam de bunda. Foi o que captei da conversa entre as meninas, enquanto caminhava no calรงadรฃo do Liceu.
- Tem caras que nรฃo gostam, nรฉ; acho que nรฃo sรฃo chegados; comer um cuzinho serรก que nรฃo faz bem?!
- Cruz credo! Exclamei mentalmente, e segui meu caminho rumo ao Fรณrum, que fica em frente.
Elas vieram na minha direรงรฃo, a passos firmes, olhar direto, "vocรช tem fogo...", perguntou a morena pele-de-cuia, "e como tem", observou a loira de olhos azuis, tรญpica europeia, me examinando de cima a baixo, parando os olhos, ostensivamente, na minha barriguilha; "te vejo sempre por aqui", disse a morena, enquanto eu lhe entregava o isqueiro; "รฉ, estou sempre na cantina, tomando cafรฉ; cafรฉ de Fรณrum รฉ choco, frio, fraco, e causa-me asia; entรฃo, venho na cantina, ร s vezes comer alguma coisa", concluรญ.
- Uma bucetinha, um cuzinho e o que mais? Indagou a loura, acendendo o cigarro.
- Vocรช estรก sempre cercado de meninas! Nรฃo รฉ ร toa!! Vai ver รฉ o maior safadรฃo, pica doce.... Completou a morena, sempre combinando seus ataques com a colega.
O Liceu รฉ uma escola destinada ร classe mรฉdia alta, concebida nos tempos do impรฉrio, onde sรณ entravam filhinhos de papai e seus apadrinhados do aparelho de estado. Mas isso danรงou com o advento da repรบblica, e hoje, assim como os "Pedro II", recebem qualquer um, desde que aguentem suas provas de avaliaรงรฃo, pois ainda sรฃo um padrรฃo de ensino almejado pelas camadas interessadas em ascensรฃo social e tecnica. Seus prรฉdios sรฃo construรงรตes coloniais, com arquitetura rebuscada, estilosos; janelรตes de madeira nobre, ainda insensรญveis ao cupim. Uma coisa fantรกstica em termos de concepรงรฃo, pois possuem salas espaรงosas, bem arejadas, lousas imensas, mesas de cedro vernisadas, cheias de gavetas; seus corredores lembram aqueles do filme Harry Potter, sinistros de arrepiar. E no caso do Liceu Nilo Peรงanha, de Niterรณi, Rio de Janeiro, tem um sรณtรฃo, que seguramente foi planejado como adega, pois tem balcรฃozinho cheio de compartimentos para copos, taรงas e talheres, ร frente de um espelho na parede em moldura de mogno e uma silhueta vitoriana; alรฉm de um velho barril de carvalho, aonde, sem dรบvida, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Lima Barreto e tantas outras celebridades literรกrias desta terra de orfandades iniciaram-se nos caminhos da radicalidade estรฉtica.
- Conhece o sรณtรฃo do Liceu? Indagou a morena, quase ao pรฉ do meu ouvido.
- ร ideal para uma brincadinha... Insinuou ela. Respondi que lรก eu jรก namorei, me embriaguei, estudei e fiz muita reuniรฃo do grรชmio.
- Entรฃo รฉ "liceano... Vamos!" Disseram ambas, quase em unรญssono.
No rรกdio da cantina, exatamente ร s dez da manhรฃ no meu Rolex, tocava uma canรงรฃo, cujo trecho diz assim:" Deixa isso pra lรก, vem pra cรก, venha ver. Eu nรฃo tรด fazendo nada, nem vocรช tambรฉm..." e seguia insinuando outras coisas, ditas pela voz de um dos meus tantos รญdolos da mpb, Jair Rodrigues.
Bom, pra encurtar o lererรช, a morena estรก aqui em casa hรก 32 anos. Jรก somos avรณs, e, nem os filhos nem os netos jamais saberรฃo das nossas faรงanhas e quando lhe mostrei o rascunho deste texto, ela fitou-me com seu olhar fogueando e objetou: vocรช nรฃo pรดr aรญ os detalhes...
- Claro que nรฃo!! Sรฃo nossas relรญquias!