Submit your work, meet writers and drop the ads. Become a member
Danielle Furtado Nov 2014
Nasceu no dia dos namorados. Filho de mãe brasileira com descendência holandesa e pai português. Tinha três irmãos: seu gêmeo Fabrício, o mais velho, Renato, e o terceiro, falecido, que era sua grande dor, nunca dizia seu nome e ninguém se atrevia a perguntar.
A pessoa em questão chamaremos de Jimmy. Jimmy Jazz.
Jimmy morava em Portugal, na cidade de Faro, e passou a infância fazendo viagens ao Brasil a fim de visitar a família de sua mãe; sempre rebelde, colecionava olhares tortos, lições de moral, renegações.
Seu maior inimigo, também chamado por ele de pai, declarou guerra contra suas ideologias punk, seu cabelo que gritava anarquismo, e a vontade que tinha ele de viver.
Certo dia, não qualquer dia mas no natal do ano em que Jimmy fez 14 anos, seu pai o expulsou de casa. Mais um menino perdido na rua se tornou o pequeno aspirante à poeta, agora um verdadeiro marginal.
Não tinha para onde ir. Sentou-se na calçada, olhou para seus pés e agradeceu pela sorte de estar de sapatos e ter uma caneta no bolso no momento da expulsão, seu pai não o deixara com nada, nem um vintém, e tinha fome.
Rondou pelas mesmas quadras ao redor de sua casa por uns dias, até se cansar dos mesmos rostos e da rotina daquela região, então tomou coragem e resolveu explorar outras vidas, havia encontrado um caderno em branco dentro de uma biblioteca pública onde costumava passar o dia lendo e este seria seu amigo por um bom tempo.
Orgulhoso, auto-suficiente, o menino de apenas 14 anos acabou encontrando alguém como ele, por fim. Seu nome era Allan, um punk que, apesar de ainda ter uma casa, estava doido para ir embora viver sua rotina de não ter rotina alguma, e eles levaram isso muito à sério.
Logo se tornaram inseparáveis, arrumaram emprego juntos, que não era muito mas conseguiria mantê-los pelo menos até terminarem a escola, conseguiram alugar uma casa e compraram um cachorro que nunca ganhou nome pois não conseguiam entrar em acordo sobre isso, Jimmy tinha também um lagarto de estimação que chamava de Mr. White, sua paixão.
Os dois amigos começaram a frequentar o que antes só viam na teoria: as festas punk; finalmente haviam conseguido o que estavam procurando há tempos: liberdade total de expressão e ação. Rodeados por todos os tipos de drogas e práticas sexuais, mas principalmente, a razão de todo o movimento: a música.
Jimmy tinha inúmeras camisetas dos Smiths, sua banda favorita, e em seu quarto já não se sabia a cor das paredes que estavam cobertas por pôsteres de bandas dos anos 80 e 90, décadas sagradas para qualquer amante da música e Jimmy era um deles, sem dúvida.
Apesar da vida desregrada que levava com o amigo, Jimmy conseguiu ingressar na faculdade de Letras, contribuindo para sua vontade de fazer poesia, e Allan em enfermagem. Os dois, ao contrário do que seus familiares pensavam, eram extremamente inteligentes, cultos, criaram um clube de poesia com mais dois ou três amigos que conheceram em uma das festas e chamaram de "Sociedade dos Poetas Mortos... e Drogados!", fazendo referência ao filme de  Peter Weir.
O nome não era apenas uma piada entre eles, era a maior verdade de suas vidas, eles eram drogados, Jimmy  era viciado em heroína, Allan também mas em menos intensidade que seu parceiro.
Jimmy não era hétero, gay, bissexual ou qualquer outra coisa que se encaixe dentro de um quadrado exigido pela sociedade, Jimmy era do amor livre, Jimmy apenas amava. E com o passar o tempo, amava seu amigo de forma diferente, assustado pelo sentimento, escondeu o maior tempo que pôde até que o sentimento sumisse, afinal é só um hormônio e a vida voltaria ao normal, mas a amizade era e sempre seria algo além disso: uma conexão espiritual, se acreditassem em almas.
Ambos continuaram suas vidas sendo visitados pela família (no caso de Jimmy, apenas sua mãe) duas vezes ao ano, no máximo, e nesses dias não faziam questão de esconderem seus cigarros, piercings ou qualquer pista da vida que levavam sozinhos, afinal, não os devia mais nada já que seus vícios, tanto químicos quanto musicais, eram bancados por eles mesmos.
Era 14 de fevereiro e Jimmy completara 19 anos, a vida ainda era a mesma, o amigo também, mas sua saúde não, principalmente sua saúde mental.
O poeta de sofá, como alguns de nós, sofria de um existencialismo perturbador, o mundo inteiro doía no seu ser, e não podia fazer muito sobre aquilo, afinal o que poderia fazer à respeito senão escrever?
Até pensou em viver de música já que tocava dois instrumentos, mas a ideia de ter desconhecidos desfrutando ou zombando dos seus sentimentos mais puros não lhe era agradável. Continuou a escrever sobre suas dores e amores, e se perguntava por que se sentia daquela forma, por que não poderia ser como seu irmão que, apesar de possuírem aparência idêntica, eram extremos do mesmo corpo. Fabrício era apenas outro cidadão português que chegava em casa antes de sua mãe ficar preocupada, não que ele fosse um filho exemplar, ele só era... normal, e era tudo que Jimmy não era e jamais gostaria de ser; aliás, ter uma vida comum era visto com desprezo pelos olhos dele, olhos que, ainda tão cedo, haviam visto o melhor e o pior da vida, já não acreditava em nada, nem em si mesmo, nem em deus, nem no universo, nem no amor.
Como poderia alguém amar uma pessoa com tanta dor dentro de si? Como ele explicaria sua vontade de morrer à alguém que ele gostaria de passar a vida toda com? Era uma contradição ambulante. Uma contradição de olhos azuis, profundos, e com hematomas pelo corpo todo.
Aos 20 anos, o tédio e a depressão ainda controlavam seu estado emocional a maior parte do tempo, aos domingos era tudo pior, existe algo sobre domingo à tarde que é inexplicável e insuportável para os existencialistas, e para ele não seria diferente. Em um domingo qualquer, se sentindo sozinho, resolveu entrar em um chat online daqueles famosos, e na primeira tentativa de conversa conheceu uma moça do Brasil, que como ele, amava a banda Placebo e sendo existencialista, também sofria de solidão, o que facilitou na construção dos assuntos.
Ela não deu muita importância ao português que dizia "não ser punk porque punks não se chamam de punks", já estava cansada de amores e amizades à distância, decidiu se despedir. O rapaz, insistente e talvez curioso sobre a pessoa com quem se deparara por puro acaso, perguntou se poderiam conversar novamente, e não sabendo a dor que isso a causaria, cedeu.
Assim como havia feito com Allan, Jimmy conquistou Julien, a nova amiga, rapidamente. De um dia para o outro, se pegou esperando para que Jimmy voltasse logo para casa para que pudessem conversar sobre poesia, música, começo e fim da vida, todos os porquês do mundo em apenas uma noite, e então perceberam que já não estavam sozinhos, principalmente ela, que havia tempo não conhecia alguém tão interessante e único quanto ele.
Não demorou muito para que trocassem confidências e os segredos mais íntimos, mas nem tudo era tão sério, riam juntos como nunca antes, e todos sabem que o caminho para o coração de uma mulher é o bom humor, Julien se encontrava perdidamente apaixonada pelo ****** que conhecera num site de relacionamentos e isso se tornaria um problema.
Qualquer relacionamento à distância é complicado por natureza, agora adicione dois suicidas em potencial, um deles viciado em heroína e outra que de tão frustrada já não ligava tanto para sede de viver que sentia, queria apenas ler poesia longe de todas as pessoas comuns, essas que ambos abominavam.
Jimmy era todos os ídolos de Julien comprimidos dentro de si. Ele era Marilyn Manson, era Brian Molko, era Gerard Way, Billy Corgan, Kurt Cobain, mas acima de todos esses, Jimmy era Sid Vicious e Julien sonhava com seus dias de Nancy.
Ele era o primeiro e último pensamento dela, e se tornou o tema principal de toda as poesias que escrevia, assim como as que lia, parecia que todas eram sobre o luso-brasileiro que considerava sua cópia masculina. Jimmy, como ela, era feminista, cheio de ideologias e viciado em bandas, mas ao contrário dela, não teria tanto tempo para essas coisas.
Estava apaixonado por um rapaz brasileiro, Estêvão, que também dizia estar apaixonado por ele mas nunca passaram disso, e logo se formou um semi-triângulo amoroso, pois Julien sabia da existência da paixão de Jimmy, mas Estêvão não sabia que existia outra brasileira que amava a mesma pessoa perdidamente. Não sentiu raiva dele, pelo contrário, apoiava o romance dos dois já que tudo que importava à ela era a felicidade de Jimmy, que como ela, era infeliz, e as chances de pessoas como eles serem felizes algum dia é quase nula.
O brasileiro era amante da MPB e da poesia do país, assim como amava ouvir pós-punk e escrever, interesses que eram comum aos três perdidos, mas era profissional para ele já que conseguira que seus trabalhos fossem publicados diversas vezes. Se Jimmy era Sid Vicious, Julien desejava ser Nancy (ou Courtney Love dependendo do humor), Estêvão era Cazuza.
Morava sozinho e não conseguia se fixar em lugar algum, estava à procura de algo que só poderia achar dentro dele mesmo mas não sabia por onde começar; convivia com *** há alguns meses na época, mas estava relativamente bem com aquilo, tinha um controle emocional maior do que nosso Sid.
Assim como aconteceu com Allan e Julien, não demorou muito para que Estêvão caísse nos encantos de Jimmy, que não eram poucos, e não fazia mais tanta questão de esconder o que sentia por ele. Dono de olhos infinitamente azuis, cabelo bagunçado que mudava de cor frequentemente, corpo magro, pálido, e escrevia os versos mais lindos que poderia imaginar, Jimmy era o ser mais irresistível para qualquer um que quisesse um bom tema para escrever.
--
Julien era de uma cidade pequena do Brasil, onde, sem a internet, jamais poderia ter conhecido Jimmy, que frequentava apenas as grandes cidades do país. Filha de pais separados, tinha o mesmo ódio pelo pai que ele, mas diferente do amigo, seu ódio era usado contra ela mesma, auto-destrutiva é um termo que definiria sua personalidade. Era de se esperar que ela se apaixonasse por alguém viciado em drogas, existe algo de romântico sobre tudo isso, afinal.
Em uma quarta-feira comum, antecipada por um dia nublado, escreveu:

Minhas palavras, todas tiradas dos teus poemas
Teu sotaque, uma voz imaginada
Que obra de arte eram teus olhos
Feitos de um azul-convite

E eu aceitei.


Jimmy era agora seu mundo, e qualquer lugar do mundo a lembrava dele. Qualquer frase proferida aleatoriamente em uma roda de amigos e automaticamente conseguia ouvir sua opinião sobre o assunto, ela o conhecia como ninguém, e em tão pouco tempo já não precisavam falar muita coisa, os dois sabiam dos dois.
Desejava que Jimmy fosse inteiramente dela, corpo e mente, que cada célula de seu ser pudesse tocar todas as células do dela, e que todos os pensamentos dele fossem sobre amá-la, mas como a maioria das coisas que queria, nada iria acontecer, se achava a pessoa mais azarada do mundo (e provavelmente era).
Em uma noite qualquer, após esperar o dia todo ansiosa pela hora em que Jimmy voltaria da faculdade, ele não apareceu. Bom, ele era mesmo uma pessoa inconstante e já estava acostumada à esse tipo de surpresa, mas existia algo diferente sobre aquela noite, sabia que Jimmy estava escondendo alguma coisa dela pois há dias estava estranho e calado, dormia cedo, acordava tarde, não comia, e as músicas que costumavam trocar estavam se tornando cada vez mais tristes, mas era inútil questionar, apesar da intimidade, ele se tornara uma pessoa reservada, o que era totalmente compreensível.
Após três ou quatro dias de aflição, ele finalmente volta e não parece bem, mesmo sem ver seu rosto, conhecia as palavras usadas por ele em todos os momentos. Preocupada com o sumiço, foi logo questionando sua ausência com certa raiva e euforia, Jimmy não respondia uma letra sequer. Julien deixou uma lágrima escorrer e implorou por respostas, tinha a certeza de que algo estava muito errado.
"Acalme-se, ou não poderei lhe contar hoje. Algo aconteceu e seu pressentimento está mais que correto, mas preciso que entenda o meu silêncio", disse à ela.
Julien não respondeu nada além de "me dê seu número, sinto que isso não é algo que se conta por escrito".
Discando o número gigantesco, cheio de códigos, sabia que assim que terminasse aquela ligação teria um problema muito maior do que a alta taxa que é cobrada por ligações internacionais. Ele atendeu e começou a falar interrompendo qualquer formalidade que ela viria a proferir:

– Apenas escute e prometa-me que não irá chorar.
Ela não disse nada, aceitando a condição.
– Há tempos não sinto-me bem, faço as mesmas coisas, não mudei meus costumes, embora deveria mas agora é tarde demais. Sinto-me diferente, meu corpo... fraco. Preciso te contar mas não tenho as palavras certas, acho que nem existem palavras certas para o que estou prestes à dizer então serei direto: descobri que sou *** positivo. ´
Um silêncio quase mórbido no ar, dos dois lados da linha.
Parecia-se com um tiro que atravessou o estômago dos dois, e nenhum podia falar.
Julien quebrou o silêncio desligando o telefone. Não podia expressar a dor que sentia, o sentimento de injustiça que a deixava de mãos atadas, Ele era a última pessoa do mundo que merecia aquilo, para ela, Jimmy era sagrado.

Apenas uma pessoa soube da nova situação de Jimmy antes de Julien: Allan.
Dois dias antes de contar tudo à amiga, Jimmy havia ido ao hospital sozinho, chegou em casa mais cedo, sentou-se no sofá e quis morrer, comparou o exame médico à um atestado de óbito e deu-se por morto. Allan chegou em casa e encontrou o amigo no chão, de olhos inchados, mãos trêmulas. Tirou o envelope de baixo dos braço de Jimmy, que o segurava como se fosse voar a qualquer instante, como se tivesse que apertar ao máximo para ter certeza de que aquilo era real. Enquanto lia os papéis, Jimmy suplicava sua morte, em meio à lágrimas, Allan lhe beijou como o amante oculto que foi por anos, com lábios fracos que resumiam a dor e o medo mas usou um disfarce para o pânico que sentia e sussurrou "não sinto nojo de ti, meu amigo, não estás morto".
Palavras inúteis. Já não queria ouvir nada, saber de nada. Jimmy então tentou dormir mas todas as memórias das vezes que usou drogas, que transou sem saber com quem, onde ou como, estavam piscando como flashes de luz quase cegantes e sentia uma culpa incomparável, um medo, terror. Mas nenhuma memória foi tão perturbadora quanto a da vez em que sofreu abuso ****** em uma das festas. Uma pessoa aleatória e sem grande importância, aproveitou-se do menino pálido e mirrado que estava dormindo no chão, quase desmaiado por culpa de todo o álcool consumido, mas ainda consciente, Jimmy conseguia sentir sua cabeça sendo pressionada contra a poça d'água que estava em baixo de seu corpo, e ouvia risos, e esses mesmos risos estavam rindo dele agora enquanto tentava dormir e rezava pra um deus que não acredita para que tudo fosse um pesadelo.
----
Naquele dia, Jimmy, que já era pessimista por si só, prometeu que não se trataria, que iria apenas esperar a morte, uma morte precoce, e que este seria o desfecho perfeito para alguém que envelheceu tão rápido, mas ele não esperaria sentado, iria continuar sua vida de auto-destruição, saindo cedo e voltando tarde, dormindo e comendo mal, não pararia também com nenhum tipo de droga, principalmente cigarro, que era tão importante quanto a caneta ao escrever seus poemas, dizia que sentir a cinza ainda quente caindo no peito o inspirava.
Outra manhã chegou, e mesmo que desejasse com toda força, tudo ainda era real, seus pensamentos eram confusos, dúvidas e incertezas tão insuportáveis que poderiam causar dores físicas e curadas com analgésicos. Trocou o dia pela noite, já não via o sol, não via rostos crús como os que se vê quando estamos à caminho do trabalho, só via os personagens da noite, prostitutas, vendedores de drogas, pessoas que compravam essas drogas, e gente como ele, de coração quebrado, pessoas que perderam amigos (ou não têm), que perderam a si mesmos, que terminaram relacionamentos até então eternos, que já não suportavam a vida medíocre imposta por uma sociedade programada e hipócrita. Continuou indo aos mesmos lugares por semanas, e já não dormia em casa todos os dias, sempre arrumava um espaço na casa de algum amigo ou conhecido, como se doesse encara
D. Furtado
Perdido. Tomado pela multidão histérica de memórias. Mutilação. Gritos de agonia. Horror nos olhos de  "inocentes". Memorias de imagens presas numa parede de incapacidade. Incapaz de ver. Incapaz de saber. De ser. Sou o luto de minha tragédia. Ser o algoz do mundo. Já não me lembro.  Ele se diz meu sogro. Minha mulher está morta. As crianças foram brutalmente assassinadas. Seus corpos foram abandonados. Todos fugiram pelo terror do algoz. E eu apaguei. Já não me lembro. É preciso acreditar?  Lembrei que não me lembro do meu rosto. Ele me pediu para olhar ao espelho. Olho diretamente para aquela figura. Então este sou eu.  Apático. Ele sorri. Também tento. Pele azul. Olhos de vidro. Meus braços se misturam com uma membrana de carne. Me estico. É possível voar? Sim! Nós todos podemos voar, este é um planeta muito grande para simplesmente caminharmos. Às vezes ele fala como um mentiroso. Eu o detesto. Meus pés são como minhas mãos, só que maiores. Você deseja cavar os túmulos com seus pés? Esse não é o ponto! A questão é que sou diferente. Que vivo num mundo diferente. Onde eles são como eu. Deixe- me viver a fantasia!
Me levaram para a sala de recuperação de memória. Fizeram um tratamento
intensivo.
Tema: quem é você?
Resultado: Você é Khaladesh! Você é Khaladesh! Você é Khaladesh!(...)
Tome estes remédios!
Não posso!
Tome estes remédios!
Não quero!
Resultado: há uma guerra acontecendo. Um inimigo misterioso destruiu tudo o que importa. Quem é tal inimigo? Uma legião de sadismo. Tudo o que é perverso neste mundo carrega o nome  Arcantsulyan. É preciso sentir ódio por Arcantsulyan! É necessário se proteger contra Arcantsulyan. Oremos aos deuses!  Será que não orei o bastante? Já não me lembro. Livrai-nos de Arcantsulyan!
Há dois Sóis em meu mundo! Há também um deserto. Um jovem caminha em direção à Thaeran'khur. Seus passos cambaleantes e exaustos seguem por dois dias inteiros pelas areias do deserto... Não há noite em Thaeran'khur. Um calor crepitante invade sua alma. Há calor em seus olhos. Há calor em suas mãos. Há calor em seus brônquios. O calor e a poeira espreitam sua angústia. Incidem sem avisar em sua esperança. Um calor tão horrível que faz curvar seu corpo em incomensurável e desesperada agonia. Nada mais importa. Seu lar já foi esquecido. Suas lembranças já são meros devaneios. O que lhe resta é apenas entregar-se para a iminente morte ou seguir caminhando até morrer. À sua frente há uma fronteira que divide a parte inabitável do restante do deserto: um local onde a radiação  dos Sóis transformou toda a extensão de  areia em puro vidro. Um local onde não ha como permanecer vivo. O jovem desesperado e quase inconsciente vê a luz refletida pela gigantesca camada vitrificada. Ele segue em direção à luz. Irá cruzar o limiar da consciência: adentra o deserto de vidro... Incineração fatal... Seu corpo se transforma em areia.  O que aconteceu depois? Ele deixou de ser. Sabe o que isso quer dizer? Quer dizer que já não é. Ele abriu caminho à todas as possibilidades. Seu corpo se fragmentou em pedaços infinitos e se misturou com os infinitos pedaços que ali haviam. Ele se tornou tudo o que existe. Ele é o deserto agora. Mas o deserto está se unificando. A luz está juntando os pedaços. Os grãos estão se tornando vidro. Reflita...
Você é Khaladesh. Membro da rebelião contra Arcantsulyan. Vive escondido nas florestas sobre- oceânicas do Oceano Yuregjorth. Sua mulher e suas crianças foram destroçadas. Você perdeu sua memória. Percebe o quão insano isso tudo parece? Você não está bem. Precisa se lembrar. Não posso me lembrar de nada. Lembre-se de sua família. Lembre-se de seu ódio por Arcantsulyan. Você deve se vingar. Você deve tomar os remédios. Você deve se juntar à rebelião novamente. Você deve se fixar no que é real. Você será espião em território inimigo. Você precisa perceber seus delírios. Você precisa descobrir o que é Arcantsulyan. Você precisa se lembrar quem você é.
goldenhair May 2013
O quarto escuro e apenas a luz vinda de fora só me deixavam ver o contorno do seu rosto, mas eu ainda conseguia decifrar seus traços, o gosto molhado da sua boca, a textura do seu cabelo.

Experimentava seus lábios, tão feroz quanto o vento quando toca as flores, fazendo-as exalarem seus perfumes, assim como o seu gosto o fazia em mim.

Desfrutava de todo o tato possível, e pelos seus braços, caminhava uma das mãos, enquanto eles se envolviam e se apaixonavam pelo meu corpo, abraçando-o forte, como um leão agarrando sua presa.
Seus beijos me completavam e me envolviam, tal como a mais fina seda do mais belo vestido cai perfeitamente no mais maravilhoso corpo de mulher. Seu cheiro doce, de pele morena, sufocava toda a hesitação que ainda me restava e me fazia entregar-me por inteiro. Suas mãos teimavam em bagunçar meu cabelo que, envolto em seus dedos, se realizava por encontrar tanta obstinação vinda de um único conjunto de dedos.  

Por um momento, antes de dar-me um outro beijo, me olhou nos olhos, com olhar de pescador que foi fisgado pelo canto da sereia e, de repente, nada mais existia.
Na sombra uma mulher jaz morta, despida e dependurada pelo tornozelo, seus braços esticados portam dedos inchados de sangue coagulado, enquanto seus anéis apertam estreitos entre suas falanges, e as pontas de suas unhas quase tocam o chão. Posso ainda escutar seus gritos atormentados ecoar ao longe, posso ainda ver seus olhos escancarados diante uma plateia que saboreia sua tortura, posso ainda ver seu corpo obeso se debater em fobia e desespero numa tentativa ridícula e frustrada de escapar. Imóvel, resta apenas uma ***** enorme de banha e tetas caídas, algo em mim se compadece por esta criatura patética, algo não consegue segurar as gargalhadas. É apenas um corpo, nada demais. Se estrebuchou de forma caricata e cômica, desengonçada, amarrada de ponta-cabeça, toda espalhafatosa, desajeitada, seu desespero é hilário, acho que é a coisa mais patética, mais desprezível, mais insignificante, mais burlesca, mais tosca, que imaginei. Apenas um corpo escroto que em breve será engolido pelos vermes do vazio, sem nunca ter representado qualquer coisa além de uma involuntária comédia . Apenas um corpo. Já não sofre, nem se deleita, há somente um caminho incerto pelo qual percorro, e que ela já conhece a chegada.

Estarei eu ao fim dependurado pelo tornozelo? Ou quem sabe dando gargalhadas ao ver a fraqueza dos homens? Ou ainda mais, serei eu a amarrar os tornozelos da humanidade? Todos são os algozes, todos riem da desgraça que não lhes pertence, mas ao fim todos terminam dependurados pelos tornozelos.

Devo continuar caminhando. O corredor é muito escuro, devemos estar no subsolo, esse barulho nojento é perturbador... Um ninho de baratas! Saiam dos meus pés! Saiam dos meus pés! Não há como evitá-las. Elas sobem e se aninham no meu corpo, se reproduzem na minha virilha, fazem sua morada em meus orifícios. Sou tomado por baratas. Sou o homem-barata, o homem fétido, o homem-praga. Aqueles milhões de patinhas que caminham no meu corpo realizam uma massagem profana, sou tomado por um prazer proibido, me deleito com o perfume nefasto, nauseabundo, a ânsia me regurgita um animus enterrado, o horror de estar completamente desencontrado de tudo o que é convencional, a minha criança enlouqueceria ao me defrontar e saber que carrego seu destino com o pênis encoberto por uma gosma preta que se forma ao espremer as baratas que ali se encontram num movimento de masturbação decrépita. Minha mãe, ah, minha mãezinha tão simplória, tão católica, tão temente à um deus inexistente, com suas orações decoradas, com seus hinos de louvor,  seus terços pendurados na cabeceira da cama de madeira antiga e seu falar típico de quem decorou e aprendeu suas frases mais interessantes nas missas tediosas do Padre Adalberto, para mim a melhor hora da missa é a hora que ela acaba, minha mãezinha, ah minha querida mãezinha, definharia até a morte no exato instante em que me visse trepando freneticamente com baratas esmagadas no meu pau. E meu pai, sempre austero, seja lá o que se passa em sua cabeça, como uma parede pintada de bege escuro, como um corredor estreito e sem espaço nas laterais, simplesmente reto como uma tábua de madeira seca, inflexível, adepto de tradições antigas, de costas dadas não reconheceria esta figura repugnante, a se satisfazer de tão nefasto pecado, como uma prole de sua descendência.

Todos desejam esmagar o homem-barata. Mas ninguém quer limpar a gosma fedida. Deixem que as formigas carreguem essa coisa nojenta! Eles dizem. Que prazer insano é este de ser mutilado e fodido até às entranhas? De saber que não há mais volta para tamanha perdição? Isso é deixar todos os dentes da boca apodrecerem. Eis que entendo a velha! Eis que compreendo as gargalhadas de quem acaba de perder todos os dentes podres num chute violento de quem perde a paciência. Eis que pertenço onde de cá estou. Há uma beleza magnética no horror, algo que me arrasta para o interior do objeto horrendo, me distanciando sou arremessado às entranhas da podridão, como um espelho a revelar em mim mesmo aquele objeto da experiência, que em repulsa não posso parar de olhar.

O motorista tira a roupa, a velha tira a roupa, e todas essas pessoas horrorosas tiram a roupa, eu já estou nu e besuntado por essa gosma cinzenta de entranhas de baratas que exala esse odor nauseante que penetra as narinas de qualquer um que se aproxime, odor hipnótico para aqueles que compreendem o segredo. Parece que sou o mais desejável nesta câmara escura. Se aproximam de mim como animais ferozes a saltar de forma muda em direção a um pedaço de carne.
Serafeim Blazej Jan 2017
Todos os sonhos
Vão ser enterrados
Enterrados com você
Então mova-se!
É o fim ou o início?
É o meio ou o nada?
Você está aqui ou está morto?

Mova-se!
Quanto mais rápido, mais devagar
Vai tragar você,
Parar seu avanço
Vai agarrar você,
Te segurar
Mova-se!

Todos os sonhos
Eles vão perecer
Não mova-se!
Fique aqui
Morra sonhando com seus sonhos
Morra imaginando o que você queria ser
Morra! sem saber como é ser
O que você quer ser

Então mova-se!
Mova-se!
Não pare,
Não fique parado
Nunca pare de se mover
Porque quando você parar
Você vai estar morto
E todos os seus sonhos também.

Mova-se!
(Mova seus sonhos)
20/01/2017
COISAS DO ARCO DA VELHA

- Os etês gostam de bunda. Foi o que captei da conversa entre as meninas, enquanto caminhava no calçadão do Liceu.
- Tem caras que não gostam, né; acho que não são chegados; comer um cuzinho será que não faz bem?!
- Cruz credo! Exclamei mentalmente, e segui meu caminho rumo ao Fórum, que fica em frente.
Elas vieram na minha direção, a passos firmes, olhar direto, "você tem fogo...", perguntou a morena pele-de-cuia, "e como tem", observou a loira de olhos azuis, típica europeia, me examinando de cima a baixo, parando os olhos, ostensivamente, na minha barriguilha; "te vejo sempre por aqui", disse a morena, enquanto eu lhe entregava o isqueiro; "é, estou sempre na cantina, tomando café; café de Fórum é choco, frio, fraco, e causa-me asia; então, venho na cantina, às vezes comer alguma coisa", concluí.
- Uma bucetinha, um cuzinho e o que mais? Indagou a loura, acendendo o cigarro.
- Você está sempre cercado de meninas! Não é à toa!! Vai ver é o maior safadão, pica doce.... Completou a morena, sempre combinando seus ataques com a colega.

O Liceu é uma escola destinada à classe média alta, concebida nos tempos do império, onde só entravam filhinhos de papai e seus apadrinhados do aparelho de estado. Mas isso dançou com o advento da república, e hoje, assim como os "Pedro II", recebem qualquer um, desde que aguentem suas provas de avaliação, pois ainda são um padrão de ensino almejado pelas camadas interessadas em ascensão social e tecnica. Seus prédios são construções coloniais, com arquitetura rebuscada, estilosos; janelões de madeira nobre, ainda insensíveis ao cupim. Uma coisa fantástica em termos de concepção, pois possuem salas espaçosas, bem arejadas, lousas imensas, mesas de cedro vernisadas, cheias de gavetas; seus corredores lembram aqueles do filme Harry Potter, sinistros de arrepiar. E no caso do Liceu Nilo Peçanha, de Niterói, Rio de Janeiro, tem um sótão, que seguramente foi planejado como adega, pois tem balcãozinho cheio de compartimentos para copos, taças e talheres, à frente de um espelho na parede em moldura de mogno  e uma silhueta vitoriana; além de um velho barril de carvalho, aonde, sem dúvida, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Lima Barreto e tantas outras celebridades literárias desta terra de orfandades iniciaram-se nos caminhos da radicalidade estética.

- Conhece o sótão do Liceu? Indagou a morena, quase ao pé do meu ouvido.
- É ideal para uma brincadinha... Insinuou ela. Respondi que lá eu já namorei, me embriaguei, estudei e fiz muita reunião do grêmio.
- Então é "liceano... Vamos!" Disseram ambas, quase em uníssono.
No rádio da cantina, exatamente às dez da manhã no meu Rolex, tocava uma canção, cujo trecho diz assim:" Deixa isso pra lá, vem pra cá, venha ver. Eu não tô fazendo nada, nem você também..." e seguia insinuando outras coisas, ditas pela voz de um dos meus tantos ídolos da mpb, Jair Rodrigues.

Bom, pra encurtar o lererê, a morena está aqui em casa há 32 anos. Já somos avós, e, nem os filhos nem os netos jamais saberão das nossas façanhas e quando lhe mostrei o rascunho deste texto, ela fitou-me com seu olhar fogueando e objetou: você não pôr aí os detalhes...
- Claro que não!! São nossas relíquias!

Esta crônica é resultado de uma conversa que eu teria com o velho companheiro de lutas Chico da Cátia. Era um companheiro de toda hora, sempre pronto a dar ajuda a quem quer que fosse. Sua viúva, a Cátia, é professora da rede pública estadual do Rio de Janeiro e ele adquiriu esse apelido devido a sua obediência a ela, pois sempre que estávamos numa reunião ou assembleia ou evento, qualquer coisa e ela dissesse "vamos embora!", o Chico obedecia, e, ao se despedir dizia: com mulher, não se discute. Apertava a mão dos amigos e partia.

Hoje, terceiro domingo do janeiro de 2015, estou cercado. Literalmente cercado. Cercado sim e cercado sem nenhum soldado armado até aos dentes tomando conta de mim. Não há sequer um helicoptero das forças armadas americanas sobrevoando o meu prédio equipado com mísseis terra-ar para exterminar-me ao menor movimento, como está acontecendo agorinha em algum lugar do oriente asiático. Estou dentro de um apartamento super ventilado, localizado próximo a uma área de reserva da mata atlântica, local extremamente confortável, mas cercado de calor por todos os lados, e devido ao precário abastecimento de água na região, sequer posso ficar tomando um banhozinho de hora em hora, pois a minha caixa d'água está pela metade. Hoje, estou tão cercado que sequer posso sair cidade a fora, batendo pernas, ou melhor, chinelos, pegar ônibus ou metrô ou BRTs e ir lá na casa daquele velho companheiro de lutas Chico da Cátia, no Morro do Falet, em Santa Tereza, para pormos as ideias em dia. É que a mulher saiu, foi para a casa da maezinha dela e como eu tinha dentista ontem, não fui também e estou em casa, cercado também pelo necessário repouso orientado pelo médico, que receitou-me cuidados com o calor devido ao dente estar aberto.

Mas, firulas à parte, lembro-me de uma conversa que tive com o Chico após a eleição do Tancredo pelo colégio eleitoral, que golpeou as DIRETAS JÁ, propostas pelo povo, na qual buscávamos entender os interesses por detrás disso, uma vez que as eleições diretas não representavam nenhuma ameaça ao Poder Burguês no Brasil, aos interesses do capital, e até pelo contrário, daria uma fachada "democrática ao país" Nessa conversa, eu e o Chico procuramos esmiuçar os segmentos da burguesia dominante no Brasil, ao contrário do conceito de "burguesia brasileira" proposto pela sociologia dos FHCs da vida. Chegamos à conclusão de que ela também se divide, tem contradições internas e nos seus embates, o setor hegemônico do capital é quem predominar. Nesse quesito nos detivemos um bom tempo debatendo, destrinçando os comportamento orgânicos do capital, e concluímos que o liberalismo, fantasiado de neo ou não, é liberal até o momento em que seus interesses são atingidos, muitas vezes por setores da própria burguesia; nesses momentos, o setor dominante, hegemônico, lança mão do que estiver ao seu alcance, seja o aparelho legislativo, o judiciário e, na falta do executivo, serve qualquer instrumento de força, como eliminação física dos seus opositores, golpe de mídia ou golpe de estado, muitas vezes por dentro dos próprios setores em disputa, como se comprovou com a morte de Tancredo Neves, de Ulisses Guimarães e de uma série de próceres da burguesia, mortos logo a seguir.

Porém, como disse, hoje estou cercado. Cercado por todos os lados, cercado até politicamente, pois os instrumentos democratizantes do meu país estão dominados pelos instrumentos fascistizantes da sociedade. É que a burguesia tem táticas bastante sutis de penetração, de corrosão do poder de seus adversários e atua de modo tão venal que é quase impossível comprovar as suas ações. Ninguém vai querer concordar comigo em que os setores corruptos da esquerda sejam "arapongas" da direita; que os "ratos" que enchem o país de ONGs, só pra sugar verbas públicas com pseudo-projetos sociais, sejam "arapongas" da direita; que os ratazanas que usam a CUT, o MST, o Movimento por Moradia, e controlam os organismos de políticas sociais do país sejam "arapongas" da direita; que os LULAS, lulista e cia, o PT, a Dilma etc, sejam a própria direita; pois do contrário, como se explica a repressão aos movimentos sociais, como se explica a criminalização das ações populares em manifestações pelo país a fora? Só vejo uma única resposta: Está fora do controle "DELLES!"

Portanto, como disse, estou cercado. Hoje, num domingo extremamente quente, com parco provimento de água, não posso mais, sequer, ir à casa do meu amigo Chico da Cátia. Ela, já está com a idade avançada, a paciência esgotada de tanto lutar por democracia, não aguenta mais sair e participar dos movimentos sociais, e eu sou obrigado a ficar no meu canto, idoso e só, pois o Chico já está "na melhor!"; não disponho mais dele para exercitar a acuidade ideológica e não me permitir ser um "maria vai com as outras" social, um alienado no meio da *****, um zé-niguém na multidão, o " boi do Raul Seixas": "Vocês que fazem parte dessa *****, que passa nos projetos do futuro..."  Por exemplo, queria conversar com ele sobre esse "CASO CHARLIE HEBDO", lá da França, em que morreu um monte de gente graças a uma charge. Mas ele objetaria; "Uma charge?!" É verdade. Não foi a charge que matou um monte de gente, não foi o jornal que matou um monte de gente, não foram os humoristas que mataram um monte de gente. Assim como na morte de Tancredo Neves e tantos membros da própria burguesia no Brasil, quem matou um monte de gente é o instrumento fascistizante da sociedade mundial, ou seja, a disputa orgânica do capital, a concorrência entre o capital ocidental e o capital oriental, que promove o racismo e vende armas, que promove a intolerância religiosa e vende armas, que promove as organizações terroristas em todo o mundo e vende armas; que vilipendia as liberdades humanas intrínsecas, pisoteia a dignidade mais elementar, como o direito à crença, como o respeito etnico, a liberdade de escolhas, as opções sexuais, e o que é pior, chama isso de LIBERDADE e comete crimes hediondos em nome da Liberdade de Imprensa, da Liberdade de Expressão,  a ponto de a ministra da justiça francesa, uma mulher, uma negra, alguém que merece respeito, ser comparada com uma macaca, e ninguém falar nada. Com toda certeza do mundo, eu e o Chico jamais seremos CHARLIE....  

Wörziech May 2014
e com a falta dos ventos vindos do sul,
deixa conscientemente de sentir a liberdade de rodar estradas a fora.

Somente paira nele o interesse por presenciar ares históricos
e as tonalidades azuis entardecidas de trilhas já traçadas pelas correntes em Istambul.

Há de se dizer que peculiarmente nesse instante,
percebe, nele próprio, pontuações apanhadas
que sua adorável gaita não tardaria a memorar:

Não é como o desconhecimento prévio
de uma viagem antiquada;

Tampouco uma imitação da intermitente angústia
pela eclosão de sentimentos vendidos em cápsulas;
Menos ainda assemelha-se com as incertezas graduais
que ocasionalmente acercam uma mente amada;

Incomparável é àquela perda do título real
concedido pelos grifos dos selos já borrados,
jogados sobre a mesa e observados em companhia
de aspirações psíquicas,
sentida em uma insana tarde corroída pelo vício.

É, em verdade,
o ruído, abafado e sintetizado,
dos restos talhados em um porão sempre a oeste,
através dos trompetes, de fumaça e metal,
regidos em orquestra pelo grupo
Camaradas do Estado Mundial.

Uma sequência sonora que perdura a narrar uma bela ficção.
A trajetória dum velho chamado Cristóvão a desbravar,
com pensamentos amenos,
terras sem dono e de corpos sem coração.
A bela construção ideológica de utilizar a dor de seus pés
para tornar esquecida aquela no peito,
provocada pelos seus negros palpitantes pulmões.

Enredo a cantarolar sua bravura por abandonar o grande cavalo
não mais selvagem autônomo e colocar-se frente ao sol túrgido no
horizonte;
desdobrando uma desregrada peregrinação atormentada pela poeira em sua narina e uma ocasional perca de controle promovida
por uma tosse ora doce, ora amarga.

Sempre em sintonia com as batidas de uma nota perdida,
adentrando o território de brasões a cores e a gesticular com gentis ramos de um mato esquecido,
vira caminharem ao seu lado alguns dos seus mais queridos juízos.

Precisamente com seu conjunto de novos e velhos amigos, o calor do espaço ele agora prioriza sentir;

De pés descalços, somente se concentra em seu ininterrupto primeiro passo,
deixando de lado o frenético, deliberado e contínuo deslocar de aço
através das regulares e vagas pontes asfálticas pelas quais todos os dias ele fatalmente necessitava deixar suas despersonalizadas pegadas;
pontes que continuam a apontar o caminho plástico e pomposo
para o estável mundo das mais belas famílias a venderem, amontoadas,
suas próprias almas à beira da estrada rígida e sem graça.

*"Viajará fora das estradas!"

— The End —