Submit your work, meet writers and drop the ads. Become a member
 
Othon Apr 5
Sob o manto ruído de um Deus ausente
Lateja a angústia, febril e fria
Vértice roto de um tempo doente
Onde o pranto apodrece em agonia.

O pulso clama, veias em flor,
Rios carmim a tingir o abismo
Cada corte um verso, cada dor
Uma elegia ao próprio exorcismo

O silêncio sangra, grita, ecoa
Voz de um mundo que nunca existiu
E a carne, espectro que a morte entoa
É ruína viva de um céu senil

A lâmina é dócil, quase divina
Traça epitáfios na pele em brasa
E o sangue, relíquia de dor vespertina
Brota insepulto, sem cruz, sem casa

Mas há um horror pior que o fim
Seguir exangue, inerte, inerme
Ser o cadáver dentro de mim
E nunca, jamais, estar realmente em morte.
Othon Jan 8
Convém a nós, os seres da imortalidade,
preteridos pelo descaso do mundo,
crer que eu sou um Deus único.
Não como esses que passam na tela dos pensamentos. Nem os que se prefiguram para fora de si, tendo tomado a sua parte do todo e se satisfazendo com o infinito.
Eu não me satisfaço com nada. Mas antes de encontrar o meu nirvana, eu abdiquei do tudo.
Sou um mestre do paladar, na miséria ou no banquete, eu sempre tenho sede de algo por provar.
Eu fecho as portas da contradição, e as abro novamente quando eu bem entendo, mas uma contradição nunca é uma contradição sem os seus dois lados, – dos quais eu sempre fiz o serviço de unir em mim como uma palavra suprema, a síntese, a afirmação e a negação e todos os seus contrários.
Certamente eu estou morrendo como alguém que nunca teve vida, mas eu teci nas cadeias de meu ser, o meu incólume e supremo apriorismo injustificável... Começa aqui, e não termina nunca. Como um Deus único eu me encontro, alheio a verdade de meu próprio ser! O todo balança para lá e para cá, como um pêndulo, e eu escolho pra que lado vou. Verdade negada ou afirmada, tanto faz, há sempre algo onipresente em tudo. Nem o todo, nem em mim, nem no mais longínquo canto do infinito, nem dentro ou fora, tudo se abre para algo inexplicável, ainda que um milhão de vezes explicado: – eis a vida!
Não tenho nada. Sou tudo, sou nada. Nem oposto nem contrário. Sigo, e a hora foge vivida... Amém. Além...
Inspired in A. Schopenhauer.
Othon Dec 2024
Canta, esplêndida sonata,
O desvario do universo adverso.
E rima, e da alma desata
Meu único e exilado verso.

Tremi nas aras da tristeza,
Nos véus de mil entardeceres...
Despi-me, nu, na profundeza
Dos abismos entre os seres.

Sou rei, e sou mendigo,
Nada sou sem meu ser.
Não sei mais o que eu digo:
Sou o infinito a se desfazer.

Flores do nada, no tudo brotando,
Como verdades que não se dizem.
Sou a soledade, sempre chorando,
Nos delírios que me desdizem.

Sou forma ambígua e inexata,
Sou negação da afirmação.
Em mim, tudo morre e se desata —
Coroa de espinhos da desilusão.

Esplendor ***** dos desonrados,
Na sombra de vasos quebrados.
Shevirat ha-kelim sangra em mim —
Pinto o mundo de carmesim.

Eis a eterna confabulação:
Minha alma, estranha e partida,
Pisoteia com indignação
As uvas ilusórias da vida!
Othon Dec 2024
Mil eclipses de sandice eu trago,
Nos sonhos de um mundo sem alento.
Três, quatro, cem mil sóbrios do estrago,
Despindo os deuses do firmamento!

Rasgo o véu do demiurgo aziago,
Derrubo mitos com meu pensamento.
Sou vendaval, ironia, presságio —
Rindo do caos em meu sacramento.

Crê em mim — no assombro que há de vir!
Nas mancebias do reino interior,
Faço o Deus do Todo sucumbir
E coro o Nada com meu esplendor!

Meu nada é verbo, é solilóquio forte,
Que vence o ser com voz sem dono.
Antes de homem, fui verme e morte —
Agora sou matéria em abandono.

Sou lâmpada viva no escuro caminho,
No tropismo ancestral do universo.
Arlequim que tece o credo em desalinho,
Vestido da epifania do verso!
Othon Dec 2024
Do alto do paradoxo, o ***** vulto
Se parte em sombras num degredo oculto,
Trazendo harpejos de verdades vãs —
Elegia fatal de cultos e manhãs.

Invoca aforismos de amarga discórdia,
E passa, impiedosa, a vida sem glória,
Sorvendo caminhos sem paz nem memória —
Bruxa do acaso, em trágica história!

Como um barquinho de papel a afundar,
Vai-se a ilusão que eu tentei resguardar,
Afoga-se o último gesto a indagar
Nos restos do peito que ousou amar.

Ó quimeras do assombro, deixai-me em vão!
Cansado, resisto na escuridão,
Sou vão eterno, um eco em dialeto,
Preso aos grilhões do silêncio inquieto.

Cantais a ingratidão como harmonia,
Enfada-vos a mais sutil poesia —
Mas eu sou supremo, imagem final,
No abismo sem nome, verbo sem sinal!

— The End —